Casas de terra molhada
Isabel Lucas
"Os homens de Relíquias constroem casas como as que os mouros faziam há muito tempo e o barulho que a obra tem ouve-se menos que o do calor à uma da tarde.
É que para António e para Jorge, construtores de paredes de terra, o calor tem um som que às vezes pesa mais que o do silêncio. É feito do bater das asas dos besouros, do voo dos insectos, e àquela hora abafa qualquer conversa.
Estão empoleirados em muros de terra num monte a dez quilómetros da Zambujeira do Mar e dizem que o calor ali se ouve menos que "nas Relíquias", e as Relíquias só ficam um pouco mais "para dentro", a nordeste de Odemira. "Aqui sempre sopra o vento do mar que refresca a gente", diz António enquanto calca a terra com um objecto de madeira igual ao que tantos homens usaram em muitas gerações anteriores à sua.
António faz casas de terra e enquanto as faz não há barulho que não o do malho a cair na taipa húmida. É um som abafado, grave, que fica enterrado mal os braços descem. Não há betoneiras nem gruas, não se parte tijolo nem pedra. É só terra calcada e os braços de sete homens protegidos do sol por sete chapéus. A terra abafa o som da obra e os homens não se ouvem no zumbido dos insectos. Também a voz de Jorge mal se escuta. Enche baldes de terra tirada do pinhal, ali mesmo ao lado. É terra escura que vai temperando com areia e cascalho e amolece depois com água e um regador, até que a massa fique moldável. "Não pode estar nem muito molhada nem muito seca senão a parede racha", explica António do alto do muro e sem interromper os gestos, o sincopado do acamar da terra. Jorge é novo. O mais novo dos sete, e há dois anos que se juntou aos outros para fazer casas de terra. Diz que gosta, mas falta-lhe convicção. Diz que "é moda" e aí já sorri.
Rega a terra e por vezes agarra-a com as mãos, faz dela uma bola para lhe testar a consistência e atira-a para o monte. Os outros homens estão em cima de muros que hão-de ser paredes de uma casa e esperam a terra que Jorge lhes há-de levar em baldes. A essa terra como a que Jorge faz, moldada depois entre dois taipais de madeira, chama-se taipa e é dela que estão a nascer cada vez mais casas na região de Odemira.
Rudolfo Muller começou a construir uma há dois anos e já vive nela. "Tem um óptimo isolamento térmico e acústico", afirma. Este suíço que se instalou em Portugal há 23 anos diz que não é um fundamentalista da natureza, mas ao saber das qualidades da taipa não hesitou. "Um dos segredos está na espessura das paredes e no modo como a terra é comprimida", adianta. Ao contrário dos tijolos de adobe, a taipa não se transporta em peças. É construída directamente na obra, por fases, e a cada uma chama-se taipal. António, velho conhecido de Rudolfo, ajuda na explicação como pode. "Um taipal leva 115 baldes da mistura de terra, pedras, areia e água; tem dois metros de comprimento, 50 centímetros de largura e de altura e entre três e quatro horas de trabalho". Depois é deixar secar e acrescentar-lhe outra nova, até ficar parede que não deve ser pintada antes de um ano, para que saia toda a humidade, porque "só a humidade destrói a taipa".
No Monte da Choça, onde Rudolfo mora, bem perto de S. Teotónio, já havia casas de taipa com paredes de reboco, caiadas de branco, como quase sempre se fazia no Alentejo. Era assim, até a tradição se perder quando a taipa passou a ser olhada como "coisa de pobres". Rudolfo decidiu preservá-la na nova casa, mas quer dispensar o reboco de uma das fachadas e pintá-la de ocre. Será então ocre sobre taipa e da cor da taipa "no lado onde bate o vento". E na casa de Rudolfo a taipa tem a cor da cortiça acabada de tirar. Já na que António e Jorge constroem parece cortiça seca. "Depende da terra", explica António, e Rudolfo também sabe que a taipa tem a cor do chão com que é feita.
Ficou de levar umas cervejas aos homens e eles cobram-lhe a promessa. Estão ao sol desde as oito da manhã e só irão para a sombra quando forem seis da tarde. Há um mês que erguem as paredes da casa do monte vizinho de Rudolfo e elas ainda não levam o tamanho de um homem, "nem nada que se pareça". Jorge, que vive numa casa de tijolo, diz que há trabalho para mais um ano. António, que sempre viveu numa casa de taipa, gostava que esta já tivesse tecto porque não há nada mais fresco. Só que a taipa só se constrói ao sol e é por isso que António encolhe os ombros sem nunca deixar de calcar a terra.
"Há coisas piores. Como tirar cortiça. Pelo menos aqui não há formigas..." E pior que isso "é andar nas minas, estar enterrado, sem ver o Sol", acrescenta Jorge. António e Jorge constroem casas de taipa, mas também fazem casas de tijolo. Gostam que a taipa "seja agora coisa chique". "
2 comentários:
Passo por este canto muitas vezes, como saberão com certeza. A componente escrita presente no vosso blog é muito boa e informativa e as imagens são sempre fantásticas.
Embora não comente com muita frequência não poderia deixar de o fazer hoje e dizer que foi um prazer imenso ler este post. Muito inspirador.
Obrigado Célia, pelas palavras de apoio e por partilhares comnosco a emoção e o prazer, expressos neste texto, que a terra nos dá. Ele mostra que não estamos apenas a falar de um material de construção,de uma técnica perdida ou de uma tradição antiga, mas de cultura em vários aspectos. Como os cantares alentejanos ou as deliciosas migas com oregãos não são apenas tradição. Tens razão, muito inspirador.
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