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23 março 2022

Miguel Ferreira Mendes_Artigo_Jornal Sudoeste_Rui Graça

Artigo publicado pelo Arq. Rui Graça no jornal Sudoeste - quinta, 24/02/2022
Miguel Ferreira Mendes
'O intenso calor de Julho apenas é cortado por uma pequena brisa do Atlântico, não muito distante dali. Um pequeno grupo de jovens, debaixo de um razoável sobreiro, abre com cuidado a caixa de madeira (taipal) que deu forma ao bloco de taipa que se revela pela primeira vez aos seus olhos curiosos. A terra nua e crua que se destapa é apreciada, tocada, cheirada, como se de uma obra de arte se tratasse.
Os trabalhos são seguidos de perto pelo arquitecto Miguel Ferreira Mendes, o formador do curso de construção em taipa organizado pela Ordem dos Arquitectos, que eu tive o prazer de receber no picadeiro do nosso turismo rural em São Luís, para o último dia do curso, destinado à componente prática.
Se a construção em terra tem levado o Miguel aos quatro cantos do mundo, regressa sempre que pode a Odemira, um dos locais onde a aventura deste tipo de construção começou para ele.
Antes da aventura, o Miguel trabalhava na Câmara Municipal de Évora onde, na ocasião de um atendimento técnico, conheceu o arquitecto Alexandre Bastos, que já referi várias vezes por ser um dos pioneiros da retoma da construção em taipa nos nossos dias. A reunião acabou e o Miguel, que já se interessava por construção em terra, ficou com a certeza que Odemira era a sua próxima paragem!
Já a trabalhar no atelier do Alexandre Bastos conheceu a saudosa Teresa Beirão, arquitecta com quem embarcou para Moçambique, para o primeiro programa de ajuda externa de habitação em países carenciados.
Rui Graça - Ao contrário do que eu tenho dito várias vezes, que a taipa é um "produto" regional, levaste-o na bagagem para o aplicar em Moçambique. 
Seria interessante explicares como correu esse processo, o que se aproveitou da nossa cultura e o que chocou com ela.
Miguel Mendes - Entendo bem o que queres dizer com "produto regional"... e, no caso do Alentejo e de Odemira em particular, é-o sem qualquer dúvida... mas a verdade é que a taipa é como a gastronomia ou a música: é um produto regional de todo o lado, com especificidades decorrentes do contexto físico, social, económico, cultural, ambiental, etc. De resto, como toda a construção em terra ou, se quisermos, qualquer cultura construtiva local.
Quando o projecto de Moçambique teve início, em 2005, eu já tinha feito as minhas primeiras construções em terra dez anos antes, num contexto experimental e académico que foi a minha infância neste domínio; mais tarde, vivi um processo de descoberta ... a juventude... trabalhando com os arquitectos Alexandre Bastos e Teresa Beirão; em seguida, fiz o post-masters do CRAterre, onde o carácter científico e experimental me permitiu passar à idade adulta. Quando aterrei em Moçambique, mais do que dominar uma técnica (taipa, ou outra), eu já conseguia compreender um material (terra) e entender quais os aspectos que podem e devem ser relevados ou atenuados num ou noutro contexto... nas palavras do arq. John Turner: "um material não vale pelo que é, mas pelo que pode representar para a sociedade".
E a inteligência e a sensibilidade, tal como a terra, também têm índice de plasticidade : se ele é pequeno, tudo se esboroa; se é muito grande, corremos sérios riscos de "fissura após secagem". Ou seja, uma intervenção do género da que decorreu em Moçambique deve, na minha opinião, deixar sempre lugar a que essa inteligência e sensibilidade vão moldando o processo à descoberta do contexto... e essa descoberta é mútua e interativa, porque os destinatários directos deste tipo de programas têm também o seu próprio processo de descoberta, aprendizagem e decorrente reacção, ao longo do projecto, e com isso vão também moldando o próprio contexto, numa evolução em simbiose.
É muito frequente eu fazer comparações entre a arquitectura e a música, e aqui também me parece que poderia simplesmente dizer que isto é jazz... sabes as escalas, os modos, a linguagem, os recursos técnicos e linguísticos, etc.; dão-te um tema, eventualmente um ritmo e uma harmonia; agora improvisa! E fá-lo como julgas ser melhor para os restantes músicos que estão em palco contigo, para o público e para ti próprio.
Ou seja, eu e a Teresa fomos a Moçambique fazer jazz :).
E sabes que mais? Desde o projecto, ao local de implantação, ao programa, às práticas, aos conteúdos, aos próprios participantes, tudo acabou por ser deliciosamente diferente do que estava previsto... nem a mais pequena previsão se concretizou. Pessoalmente, isso foi uma experiência extraordinariamente enriquecedora e o grau de nada que tínhamos (todos) à chegada, comparado com os resultados que conseguimos (todos) obter... e que duram até hoje... fez com que, desde então, eu só receie projectos e missões onde tudo insiste em bater certo desde o início.
RG - A partir de Moçambique, formaste uma ligação muito sólida com a Associação "CRAterre". Será que podes explicar o objectivo desta organização e a importância da mesma para o conhecimento e aplicação de construção em terra a nível mundial?
MM - Na realidade, a minha ligação ao CRAterre pouco tem a ver com Moçambique, eu estudei no CRAterre e comecei com algumas colaborações com esta organização ainda antes de ir para Moçambique. Mas, de facto, a experiência de Moçambique, pelas razões de que falo atrás, deu-me um ânimo incrível para ir para quase qualquer tipo de contexto com um grande optimismo... digamos que o meu factor desenrascanço sofreu um sério incremento, em Moçambique.
O CRAterre é a grande referência mundial, a nível da construção em terra, e entidade pioneira da sua retoma no mundo ocidental, com início de actividade nos anos 70. É uma entidade "tridimensional": é um laboratório de investigação e experimentação, sediado na ENSAG - Escola de Arquitectura de Grenoble (França) e integrante da Unidade de Investigação Arquitectura, Ambiente & Culturas Contrutivas (AE&CC); é a entidade que, na ENSAG, dá formação, nomeadamente, o DSA (post-master, 3º ciclo), com uma frequência bianual, e que forma alunos licenciados (sobretudo arquitectos e engenheiros, mas também geólogos, artistas, antropólogos, etc.) de todo o Mundo, em arquitectura de terra e desenvolvimento sustentável; e é uma associação (do tipo ONG), que desenvolve e participa em projectos de Património, Habitat e Materiais com vários parceiros e contextos em mais de 100 países, até hoje. A minha relação com o CRAterre é antiga e múltipla: estudei no DSA de 2000-2002, sou membro da associação ONG, e faço parte da equipa, há vários anos, quer enquanto membro da equipa de projectos, quer enquanto investigador associado do laboratório. Em termos concretos, representa uma boa fatia da minha actividade profissional, sobretudo no que toca a missões e projectos em diversos países e contextos.
Relevaria três aspectos, da actividade do CRAterre: um enorme conhecimento adquirido e competência; uma base ética e filosófica inabalável e que se reflete na operacionalidade; uma capacidade (cultivada) rara em trabalhar com os parceiros e as populações de forma horizontal, sem processos de 'endoutrinamento' e em processo de valorização e aprendizagem mútuas. Isto dá uma dimensão humana e filosófica à construção com terra que me parece indispensável.
RG - A tua ligação à "CRAterre" abriu-te portas para vários destinos exóticos. Obviamente que nessas andanças de "arquitecto sem fronteiras" deves ter coleccionado experiências inesquecíveis. Podes contar-nos algumas dessas experiências que mais te marcaram?
MM - Teria muitas e muitas horas de coisas para contar! São mais de 15 anos e dezenas de missões, em contexto de carência, desenvolvimento, pós-catástrofe, na maior parte das vezes realizadas a solo, com os parceiros locais ou a população local. O que marca mais? A raiva, perante a miséria extrema das populações, que não consegues explicar! O horror, perante os escombros físicos e humanos de uma catástrofe natural! A desolação perante o olhar longínquo dos migrantes e deslocados! A impotência dos carenciados, face a fenómenos de poder viciado e corrupto! Tudo isso marca, de forma indelével...
Mas o optimismo deve ser 'defeito de fabrico' de quem anda nestas coisas (ou não andaria), e acaba por me marcar bem mais, coisas como a astúcia e a nobreza com que as populações e as pessoas fazem face a situações que arrepiariam o lombo a qualquer europeu, ou a inteligência das estratégias que desenvolvem para o seu quotidiano, ou ainda a ironia, por vezes trágica, que existe nas entrelinhas dessas vidas.
Em 2016 estive envolvido no projecto de construção de campos de refugiados no norte da Síria. O projecto era promovido pelo Crescente Vermelho (correspondente à Cruz Vermelha, em países muçulmanos) do Qatar. A minha missão, enquanto perito CRAterre, era de acompanhar o processo de definições construtivas e de projecto urbanístico e arquitectónico, nas suas variantes. Curiosamente, nessa situação, foi por meu conselho que eles abandonaram a ideia de construir em taipa... uma técnica totalmente exógena e desconhecida pelos intervenientes, excepto a partir de fotos... e passaram ao adobe, que é uma técnica ancestral naquela região, bem mais adaptada ao clima e à terra disponível (daí, ser ancestral, está bem de ver). Na totalidade dos sítios por onde ando e andei, há um fascínio pelo brilho das coberturas em chapa... que trazem uma ideia de modernidade e sofisticação, um fogo-fátuo de civilização... e uma rejeição liminar pelas coberturas em fibras (colmo, palha, etc.). No Haiti, na Guiné-Bissau, em Madagáscar, em Moçambique, no Nepal, etc., toda a gente tenta ser criativa na formulação de razões pelas quais alegam que as coberturas em fibras não funcionam, e torna-se impossível fugir à chapa ondulada, sob pena de descredibilizar todo um processo por causa de um "pormenor". De repente, na Síria, deparo-me com um pedido expresso de que as coberturas sejam planas, em terra. Fiquei extremamente motivado, quer pelo entusiasmo de realizar tal solução construtiva, quer pela constatação de que estava perante pessoas que, deduzira eu, já tinham ultrapassado os estigmas em relação aos sistemas vernaculares. Só não entendi porque reagiram com frieza à minha exultação. Percebi, quando me explicaram que, num passado muito recente, tinham construído campos de refugiados com coberturas em chapa, e que, ainda mal estavam ocupados, e já estavam a ser bombardeados por aviões que usavam o brilho da chapa como 'detector' e mira.
É natural sermos confrontados com coisas muito más e duras. É natural termos um certo sentimento de vergonha alheia, em nome da humanidade, por haver seres humanos a viver em tais condições. É natural sentirmos angústia e inconformismo, quando nos confrontamos com tamanhas assimetrias e injustiças. É natural sentirmos raiva e medo, quando somos ameaçados, como fui, por um alto funcionário do estado de um PALOP, ao assistir a uma aula minha numa universidade local, em que eu apregoava as técnicas construtivas com materiais locais como ferramentas de emancipação e autogestão das comunidades. Mas quando se vem de cepa optimista e inconformista, esses sentimentos servem para estimular a não parar nem desistir.
O que marca para a vida, na realidade, são coisas como ver uma criança de um bairro de lata malgache a desenhar, riscando a pele negra do joelho com um pequeno pau apanhado do chão, com um brilho nos olhos que não se vê em muitos alunos de artes em colégios caros da Europa; ou ver a zona do Grand'Anse (sudoeste do Haiti) pejada de casas construídas a partir dos ensinamentos retirados das que eu e os rapazes que andei por lá a formar tínhamos andado a fazer por aquelas bandas, uns anos antes, porque essas resistiram ao ciclone que entretanto passou, enquanto tudo à volta ficou arrasado; ou ver a efusividade das crianças nas escolas degradadas das montanhas do Burundi perante a passagem de uma hipótese, que é o que alguém como eu, na posição em que lhes surjo, representa para eles.
Mas não posso deixar de referir uma das situações mais gratificantes que tive a extraordinária oportunidade de viver: em 2013, estive em Moçambique, por causa de um projecto para uma escola artística para as crianças dos bairros de lata de Maputo (construção em terra, executada pela comunidade). Resolvi ir visitar o bairro de Mumemo, onde tinha estado a trabalhar oito anos antes, no projecto com a Teresa Beirão. Os jovens que eu tinha formado e que participaram na construção do edifício de demonstração, em 2006, estavam todos para fora, tinham-se mudado, tinham formado família, etc. (alguns, com destino menos bom). Deparei-me com uma série de casas construídas em BTC, com blocos idênticos aos que esses jovens tinham aprendido a fazer comigo, oito anos antes. Fui ao local onde costumávamos produzir esses blocos, em 2006. Encontrei alguns jovens, de volta de 3 prensas, muito semelhantes àquela que tínhamos conseguido desencantar da África do Sul, em 2005, mas não exactamente iguais. Parei e fiquei a olhar. Um dos jovens meteu conversa "estás interessado?" ao que eu respondi que sim. Sem mais, o rapaz começou a explicar-me que aquilo eram blocos de terra comprimida, que eles faziam com umas prensas que eles próprios tinham fabricado, a partir de uma muito velhinha que tinha sido comprada numa formação que tinha havido há uns anos, em que um português tinha vindo ensinar como se fazia, e então agora eles produziam blocos e tinham construído várias casas no bairro. Quando apareceu um dos mais velhos, fui desmascarado, entre galhofa geral, e terminámos todos a fazer blocos, em jeito de brinde "à saúde". Este momento teve particular impacto em mim, por ter sido a constatação "ao vivo e a cores" da total apropriação da técnica, dos saberes e das práticas, pela comunidade, tendo inclusivamente fabricado réplicas melhoradas da prensa, com pequenas alterações que consideravam melhorias. Recebi uma dose extra de motivação, naquela tarde moçambicana!
RG - Finalmente, não pude deixar de reter da tua formação que, de todas as técnicas de construção em terra que foste "coleccionando" no teu percurso, Adobe, Blocos de Terra Comprimidos, vulgarmente designados por BTC ou Cob, para mencionar as mais relevantes, é a Taipa que eleges como favorita. Será que por ter sido o primeiro amor, no nosso Alentejo litoral, ou a taipa é mesmo especial?
MM - Em bom rigor, não foi a primeira dessas técnicas que experimentei. E, na verdade, será mais justo dizer que a minha técnica favorita é aquela que mais sentido faz, naquele contexto... e entenda-se "fazer sentido" como algo plural e não apenas tecnicamente, mas também social, economica, cultural, ambiental, emocional e eticamente (etc.).
A relação com o material terra tem uma particularidade que é o que verdadeiramente me apaixona! a descoberta contínua. A cada projecto, a cada sítio, a cada contexto, temos de repensar tudo. E o que é curioso, é que não temos de inventar quase nada, só temos de saber ver, sentir, pensar.
Há uma abordagem ética que me faz optar sempre pela técnica mais pertinente, nos termos em que falo acima. Mas há uma exultação emocional quando, combinando as variáveis, o resultado dá taipa.
Não me lembro onde ouvi a história de um casal que, certa noite, tinha ido passar um serão a casa de amigos e, ao regressar, o marido, meio taciturno, diz à mulher que não tinha apreciado a forma como, em determinada discussão, ela tomou o partido do seu oponente, em vez do seu; ela respondeu-lhe que, quando se casou com ele, não lhe prometera estar sempre do seu lado, mas sim estar sempre ao seu lado. Será esta, porventura, a minha relação com a taipa.
De facto, tenho uma relação emocional e sensorial altamente íntima com a taipa. Considero-a de uma sofisticação tremenda mas, simultaneamente, de um "primarismo" desconcertante. Chamar-lhe-ia "sofisticadamente elementar". Como tudo o que é genial, a taipa encerra uma simplicidade avassaladora... sobretudo na sua forma tradicional (modular e manual): apaixona-me a ideia de conseguir construir uma casa inteira usando apenas "dois pedaços de madeira".
Conclusão:
Se felizmente, no nosso país, muitas das situações que o Miguel descreve estão ao nível da ficção, a situação de um Sírio ou um Moçambicano que queira construir uma pequena casinha no nosso país também pode ser para eles um filme de ficção, com algumas passagens de terror.
A guerra no nosso país trava-se nas diversas instituições, agora em formato digital que, ao contrário de simplificar o processo, tem aumentado as dificuldades, mesmo para os mais destros informaticamente. Para ter uma amostra do que se exige para a construção da mais pequena casinha, a mesma tem de ser duplamente certificada energeticamente, pelo engenheiro habilitado que elabora o projecto e pela entidade que o confirma. Deverá ter um plano de segurança e saúde específico mesmo que a empresa construtora tenha obrigatoriamente normas de actuação e formação na área. Já não basta uma ficha preenchida por técnico habilitado para executar a instalação eléctrica, actualmente para praticamente todas as construções, já se exige projecto eléctrico e ainda relativamente à energia, queira ou não queira o proprietário utilizar gás, terá sempre de entregar um projecto desta rede de energia, novamente certificado por uma entidade idónea que confirme o previsto por técnico habilitado.
À carga burocrática vai juntar-se a dificuldade em encontrar um empreiteiro que esteja habilitado para a realização da obra, como se imagina também ele submerso em burocracia, em exigênciaS técnicas e em garantias legais.
Mesmo que acreditemos que nas futuras casas não vai haver frio ou calor, que ninguém se vai magoar e que nunca vão ficar mal na paisagem, muitos alentejanos devem estar mais a pensar na famosa história do burro do cigano (que estava a habituá-lo a não comer) que quando já estava quase ensinado morreu, ou seja, as exigências até podem melhorar muito as casas mas em breve nenhum cidadão comum poderá pagá-las!
As dificuldades para a concretização de uma pequena habitação neste momento já são enormes e ainda assim não se consideram aspectos fundamentais como a eficiência hídrica ou a sustentabilidade dos materiais empregues.
Se não encontrarmos uma forma para a realização expedita e prática das casas mais pequenas, apoiada nas práticas populares e tradicionais, não descurando o incrível património imaterial da construção em terra, dando mais autonomia e confiança precisamente aos profissionais no terreno, vão-nos começar por impingir o "fast-food" da construção (como já acontece), as soluções fáceis de pré-fabricados e casas modulares, grande parte importadas e muito pouco amigas do ambiente, apesar de todas se apregoarem "eco" (podemos estar já a assistir à destruição silenciosa do importantíssimo sector da construção civil no nosso país). Nessa altura esperemos que o Miguel Mendes e os seus amigos do CRAterre nos possam vir ajudar a pegar novamente nos maços porque vamos estar sem casas e sem dinheiro.'

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