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08 fevereiro 2022

Teresa Beirão_Artigo_Jornal Sudoeste_Rui Graça

Artigo publicado pelo Arq. Rui Graça no jornal Sudoeste - quinta, 12/11/2020

'Teresa Beirão
A Teresa Beirão foi sem dúvida uma das pioneiras do ressurgimento da taipa como método construtivo, que se começou a definir no Alentejo com clareza a partir do final dos anos noventa. Nessa altura a Teresa partilhava um pequeno gabinete de projectos (uma casa de habitação adaptada na zona histórica de Odemira) com o seu marido, o arquitecto Alexandre Bastos e o arquitecto Henrique Shreck, que ocupava o sótão e trabalhava autonomamente, apesar de se dedicar igualmente à construção em taipa.
Muito para além do seu contributo como projectista, a Teresa teve um papel determinante como elemento agregador do movimento contemporâneo de construção em terra. Quando possível os próprios projectos eram o pretexto para conhecer melhor e difundir as técnicas da taipa. Foi o que aconteceu por exemplo com o mercado de São Luís, projecto da Teresa Beirão e Alexandre Bastos, provavelmente o primeiro edifício público contemporâneo em taipa. A construção do mercado ocorreu em condições de escola oficina onde se formaram alguns taipeiros na altura.
A arquitecta Teresa Beirão abria com facilidade as portas do seu gabinete, passando os seus conhecimentos e permitindo colaborações nos seus projectos por arquitectos que se interessassem pela temática (eu mesmo cheguei a elaborar um projecto em taipa com a Teresa para o concelho de Santiago do Cacém, um equipamento que infelizmente não chegou a ser construído). Ao mesmo tempo a Teresa tentava abrir portas de institutos e técnicos relevantes que pudessem contribuir para o estudo da taipa, buscando sempre a sua melhor compreensão e adaptação às novas necessidades e legislação em vigor.
A mais relevante Associação de promoção e estudo da construção em terra em Portugal, o Centro da Terra, recebeu um forte contributo da Teresa Beirão que chegou a ser presidente por um período significativo e ainda viu o seu nome ser atribuído ao Centro de Documentação da associação, na biblioteca municipal de Santiago do Cacém, como merecida homenagem.
No momento da homenagem à Teresa Beirão, a presidente do Centro da Terra era Catarina Pereira, arquitecta, naturalmente entusiasta da construção em taipa.
Rui Graça - Ainda trabalhaste de perto com a Teresa Beirão na direcção do Centro da Terra. Para além da evidente paixão da Teresa pela construção em taipa, como descreverias o seu trabalho de arquitecta?
Catarina Pereira - A Teresa conseguiu gerir com maestria a união entre uma técnica que é tradicional com a linguagem própria que conferia às suas obras. Ela tinha a ousadia, talvez para quebrar um tabu, de expor o valor estético que uma parede construída em terra pode oferecer, deixando grandes áreas dos seus edifícios sem reboco.
Falava com honestidade das suas experiências realçando as vantagens das casas em taipa. Lembro-me bem do exemplo que sempre dava, como fumadora, da capacidade de purificar o ar das casas em terra, estando ela particularmente satisfeita com a sua habitação por não reter o cheiro a tabaco. A Teresa evidenciava também as fragilidades do material, trazendo para discussão as formas como estas deviam ser superadas.
RG - Quais as principais conquistas do Centro da Terra? e quais os desafios que, na tua opinião, se colocam à construção em taipa no nosso país?
CP - A principal conquista do Centro da Terra foi a congregação de um número significativo de profissionais, estudantes, autarquias e simples interessados numa plataforma onde podem partilhar e divulgar informação relativa ao tema. Para essa dinâmica apoiaram-se encontros, publicações, oficinas e estudos, que têm contribuído para o conhecimento e divulgação do património imaterial que é a construção em terra.
RG - E quais os desafios que, na tua opinião, se colocam à construção em taipa no nosso país?
CP - Um desafio importantíssimo prende-se com a necessidade de contornar a legislação vigente que é muito específica e direccionada para obras de estrutura em pilares e vigas de betão, legislação essa que não reconhece ou abrange a arquitectura solar passiva e timidamente valoriza a qualidade do ar no interior dos edifícios. Em suma, a legislação vigente tem muita dificuldade em compreender os comportamentos de um material que não seja normalizado.
O outro desafio que considero essencial é dar a conhecer ao público em geral a vantagem da sustentabilidade das construções em terra. Essa percepção só vai ser clara se, para além da vida útil dos edifícios (onde as construções em taipa também já demonstraram a sua longevidade e performance) se considerar a fase da construção (com imbatíveis vantagens de poupança energética e recursos na produção e transporte de material) e a fase da "morte" ou colapso, onde as paredes em terra não representam qualquer lixo ou resíduo, podendo inclusivamente ser essa terra utilizada de pronto para outra construção ou para cultivo.
RG - Uma das constantes preocupações do Centro da Terra (e o teu interesse pessoal) sempre foi o conhecimento das diferentes construções em terra que se vão concretizando em diferentes países. Na tua perspectiva há alguma característica relevante da construção em terra em Portugal que a distinga das construções em terra doutras partes do mundo?
CP - A diferença mais evidente diz respeito à imagem arquitectónica. Nos países com culturas e legislação mais próximas das nossas, centro da Europa ou Estados Unidos as construções em terra assumem uma linguagem arquitectónica mais abstracta, evidencia-se o material e a tecnologia sobre a cultura. Em Portugal, talvez porque no Alentejo, onde se centra o movimento de construção contemporânea em taipa, haja ainda uma referência de construção regional marcante e apelativa, a esmagadora maioria dos arquitectos dedicados à taipa abstiveram-se de entrar em ruptura com essa linguagem regional optando em vez disso por adaptá-la às novas necessidades.
Finalmente, a natureza e o perfil dos clientes de casas em taipa, curiosamente com uma percentagem muito significativa de estrangeiros, têm vindo a reforçar o arquétipo do monte alentejano, quer para uso habitacional quer para turismo rural. Verifica-se por isso a predominância da horizontalidade e a cobertura em telha assume quase invariavelmente a sua presença na composição.
No papel de aproximação e promoção da construção em terra, quem convivia com a Teresa identificava uma força, um impulso que lhe dava uma motivação extra na sua missão. Eu acredito que essa inspiração provinha da influência do seu pai, o arqueólogo Caetano Melo Beirão, que a levou como jovem estudante de arquitectura ao Alentejo, a acompanhar algumas escavações que revelavam o uso activo da taipa. A aproximação às formas e aos materiais tradicionais das construções do Sul eram, para a Teresa, também, uma aproximação ao próprio pai e aos seus valores…
Efectivamente as construções em taipa, mais do que sensações, parecem transmitir-nos sentimentos. Há quem se pergunte, podem as casas ter alma? Alma acredito que não tenham, mas têm, para muitas pessoas, um carácter afectivo, por experiencias marcantes que grande parte de nós já teve em casas antigas (vividas com familiares, no cinema ou em viagens em zonas históricas). As novas casas em taipa recuperam o carácter simbólico e a expressão das casas antigas típicas do Alentejo, que nos marcam pelas grossas paredes de ricas texturas. Aproximam-nos claramente das nossas raízes e como tal reforçam a nossa identidade.
A identidade arquitectónica de cada região é um valor consagrado por lei (cada autarquia tem a obrigação de indicar em regulamento municipal as condições específicas da construção civil no seu concelho). Apesar disso, penso que todos constatamos que, fora as zonas históricas devidamente limitadas, onde basicamente é obrigatório reconstruir igual ao original, a capacidade de preservar a identidade das regiões quando se constrói de novo, é um exercício que se revela de extrema dificuldade… Neste tema, as palavras Norte e Algarve já carregam em si a imagem da descaracterização arquitectónica e paisagística. Se a palavra Alentejo não o faz deve-se principalmente à menor quantidade de novas construções e urbanizações e não à melhor integração dessas construções, em regra.
É um facto que, desde o momento que se "ressuscitou" a construção em taipa em Portugal, que a legislação aplicável à construção civil em geral tem registado um aumento muito significativo do grau de exigência nas novas construções. No conforto térmico, na acessibilidade ou no ruído (ainda que em certos montes alentejanos nos perguntemos se os projectos acústicos servem para nós não ouvirmos os passarinhos ou para eles não nos ouvirem a nós).
Se não há dúvida que o grau de exigência nas novas construções aumentou, constata-se que ele incide essencialmente nos aspectos quantitativos e muito pouco nos aspectos qualitativos. Ou seja, se há um rigor cego na aplicação dos cálculos térmicos ou acústicos nas novas obras, não se presencia a mesma atenção relativamente aos cuidados de integração das novas construções nas regiões onde se inserem, nem a contabilização dos impactos das mesmas no meio ambiente (salvo na salvaguarda da eficiência energética das construções).
Se as obras em taipa representam uma percentagem residual no panorama das novas edificações, mesmo no Alentejo, o regresso à nossa construção tradicional e a sua adaptação às exigências atuais, ressuscita e revela a nossa cultura construtiva. Já os princípios ecológicos associados à construção em terra podem mesmo vir a ser revolucionários pela sua pertinência e actualidade.
Relativamente à Teresa Beirão, se a componente afectiva das suas origens pode ter sido um grande motor na sua determinação para o estudo e prática da arquitectura tradicional, era o seu saudável sentido revolucionário e rebelde que sempre sobressaía. A última vez que estivemos juntos a Teresa foi ter comigo ao meu monte, motivando-me precisamente para fazer estas crónicas. Já estava visivelmente debilitada pela doença que a levou e lembro-me bem de me ter dito que o médico a proibira de conduzir.'

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