Artigo publicado pelo Arq. Rui Graça no jornal Sudoeste - quinta, 01/10/2020
'Alexandre Bastos
Em 1993 é concluída a obra de um Ateliê de Pintura de construção em taipa (projecto de 1992) e é apresentada, no mesmo ano, na 7ª Conferência Internacional sobre o estudo e conservação da Arquitectura de terra, que se realizou em Portugal, na cidade de Silves. Esta construção acaba por ser uma referência do ressuscitamento desta técnica de construção, a taipa, tão própria do nosso Alentejo. O seu autor é o arquitecto Alexandre Bastos.
Do seu incrível currículo de trabalhos em taipa onde eu ainda tive o privilégio de colaborar no 1º prémio do concurso de recuperação, conservação e restauro do Castelo de Paderne e Capela do séc. XV, do IPPAR, no Concelho de Albufeira. Contam-se diversos contributos entre projectos, publicações e conferências. O Alexandre concentra muita informação relevante no seu blog, "poética da terra" que merece uma visita cuidada para quem se interessar por este tema.
No período onde eu pertenci ao licenciamento de obras particulares da Câmara Municipal de Odemira, os projectos do Alexandre Bastos eram sempre motivo de interesse do nosso grupo de arquitectos. Para quem não sabe, o Alexandre, para além de arquitecto é um brilhante pintor. Os alçados dos projectos do Alexandre Bastos eram tratados como telas. Em muitos dos alçados das obras do Alexandre Bastos sente-se uma liberdade de composição muito própria da pintura, influenciando a Arquitectura.
Rui Graça - Penso que ainda há uma ideia, talvez um preconceito, lamentável quando é assumido por arquitectos, de que a prática da arquitectura tradicional alentejana consiste num acto não criativo e desactualizado. Eu digo que se há alguma coisa que caracteriza a sua obra é precisamente a liberdade artística e a criatividade. O que o liberta na prática da arquitectura tradicional?
Alexandre Bastos -"Reconstruí muito: É colaborar com o tempo sob o seu aspecto de passado, apreender-lhe ou modificar-lhe o espírito, servir-lhe de muda para um mais longo futuro; é reencontrar sob as pedras o segredo das origens."
Adriano. Marguerite Yourcenar
Nada de especial, a criatividade e não ser mimético. Talvez esteja a ser parco na resposta, assim vejamos em mais pormenor:
Sem entrar a fundo na Arquitectura popular, ela ensina muito e duma forma surpreendente, cada zona, cada território, tem a sua especificidade e a sua necessidade e adaptação; Seja nas chaminés, telhado, inclinação, beirado, pedra, taipa, adobe, fenestrações, comprimento, largura, gigantes, platibandas, grelhas, paisagem, interiores do lar e do lar(lareira); Alcovas, cozinha de fora, cozinha dos convidados, sala por estriar que raramente se usa, ou pequena sala junto ao fogo onde se cozinha com a panela de ferro? Têm corredores ou passa-se duma divisão para a outra? A última telha do beirado é mais comprida ou é curta? Então porque estas são mais alongadas ao norte do Alentejo? E como se resolve, caso haja necessidade da dita telha diferente seja aplicada onde não se fabrica in situ? Simples: Executa-se um beirado duplo e cada um tem a sua beleza e lógica. Assim lança-se a água para o mais longe possível da fachada e da entrada. Quanto mais alta fôr a fachada mais necessidade se exige da distância da queda de água sobre o alçado. E como 'acelerar' ou projectar a água ainda para mais longe? Com a "sela" do terminus das 3 últimas telhas, sendo que a última é praticamente horizontal. Só tem paralelo no Japão. É preciso ter cuidado com o ar, ou melhor, com o vento e o percurso da água.
Mas vivemos de Sol a Sol? Não, a sociedade instalada ou aquela que está prestes a ocupar o território vive de uma outra forma. Se o horizonte é horizontal porque hei-de ter apenas janelas verticais? Não poderei apanhar a água que corre de uma outra forma? E as superfícies não poderão ser no mesmo material e expostas de um outro modo? Os rebocos têm que ser previsíveis e simétricos? A identidade é preservada mas com outro espirito, adaptação e contemporaniadade desde que preservemos a memória e os ensinamentos dos arquitectos anónimos.(a arquitectura popular). Como é que isto se chama? Equilíbrio e sensatez.
RG - A incrível opção de voltar a construir em taipa no princípio dos anos 90, quando eu estava a iniciar o meu curso de arquitectura, é seguramente muito diferente da mesma opção nos nossos dias. Hoje em dia a construção contemporânea em taipa já tem um percurso marcado. O que o motivou para explorar nessa altura essa técnica tradicional em desuso?
AB - "Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre."
Adriano. M.Yourcenar (Memórias de Adriano)
Essa opção era previsível e óbvia para mim. Então se temos o material aos nossos pés e a construção assim era, porque não retomá-la? Não é ela a nossa cultura e identidade? E repare que o que é interessante é a sua descontinuidade que por agora não cabe aqui explorar, mas fazer notar que a idade dos grandes taipeiros era já avançada e se não aprendessemos com eles, seria com quem? Mesmo no conhecimento das análises à terra havia um défice, os limites de consistência, a granulometria , compressão, tracção, análise "dos finos", etc, e desde esta constatação iniciei esse processo em 1992/93.
Por outro lado é óbvio que não esqueço o meu passado privilegiado, neto e filho de arquitectos com quem aprendi quase tudo, sobretudo com o meu Pai, onde as leituras eram essenciais , Orlando Ribeiro, José Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, 'Arquitectura Popular' do Sindicato dos arquitectos, etc.
RG - No seu trabalho, um arquitecto acaba inevitavelmente por interagir com a personalidade dos seus clientes. Com mais de 50 obras em taipa, de maior ou menor dimensão, já é possível identificar o perfil do cliente que procura a construção em taipa? Esse perfil mudou durante os 25 anos que projecta em taipa?
AB - O perfil é sempre a ecologia e o conforto interior. Também o custo do material que é zero. Por vezes cultural, mas raro. Curiosamente o perfil não mudou.
RG - Vivemos num concelho, Odemira, onde apenas há 3 monumentos classificados, uma ponte em Santa Clara, uma igreja em Odemira e um castelo em Vila Nova de Milfontes (este último cheio de construções clandestinas na cobertura?). Num território onde a dispersão do património é grande e sem a existência de muitas construções de excepção, as políticas de valorização e preservação desse mesmo património são difíceis de aplicar, apesar dos seus arquétipos serem tão presentes e importantes para a nossa identidade - o monte alentejano, as ruas de aldeia com casas térreas caiadas? Qual a importância e que influência teve o património original do concelho de Odemira na sua obra?
AB - A sua pergunta dá a resposta - A simplicidade desse património, "as ruas da aldeia, as casas térreas, o monte alentejano" e o mais importante de todos o 'assento' agrícola de outra dimensão, em decadência pelo revés da agricultura e a contemporaniadade , o decurso normal da passagem do tempo. Donde, e falo por mim, a arquitectura deverá ser simples, escorreita não significando que não seja contemporânea ou denotante aqui e ali, preservando sempre um diálogo com a pré-existência do sítio, da aldeia, do monte, enfim da urbe e da identidade. Numa simplicidade tão grande é evidente que o mais grave está na destruição/demolição dos valores simples da arquitectura. Por vezes o acréscimo destrói, e por mais paradoxo que pareça, acrescenta aquilo que não deve ter, uma espécie de abcesso que necessita com urgência de um estomatologista.
RG - ?E num sentido contrário, que influência acha que pode ter o desaparecimento de parte substancial do património original num concelho como Odemira no trabalho dos arquitectos que agora iniciam o seu trabalho?
AB - Talvez, talvez menor quantidade e qualidade para influenciar e determinar o fio condutor das suas obras.
RG - No seu percurso de construção em taipa a expressão apaixonante quase se pode aplicar literalmente, essa paixão e ideal contribuiu certamente para a ligação com a sua ex-mulher, a arquitecta Teresa Beirão, também com um brilhante currículo de construção em taipa. O que tem de tão apaixonante a construção em Terra?
AB - Eu conheci a Teresa em 1976 e desde 1977 que convivíamos amiúde. Tínhamos o mesmo ponto de vista, a mesma abordagem em termos profissionais do património arquitectónico e a mesma filosofia de abordagem da proposta a um novo desafio. Dessa forma houve um encontro.
O que a apaixonante Taipa, (construção em terra) tem, é ser infinita sob o ponto de vista criativo. Textura irregular, lisa, polida, com pigmentos, várias cores, baixo relevo, mais cal, menos, com gravilha de cor, sem, com estereotomia da cal visível, metade dela, sem, com riscas brancas no taipal, com intersecção das diagonais, com muitas diagonais, sem elas, rebocada de cal, rebocada com escariola e pintada, frescos e cal, etc, está a ver, é uma infinidade. O que há de melhor para um artista plástico-arquitecto? Isso mesmo.
Mas muito mais; poupa 2/3 de água, respira e transpira, adapta-se a qualquer forma, é altamente isolante, acusticamente soberba, dum aroma constante, e fantástica sob o ponto de vista sísmico. Tem outra grande qualidade, a alteração e o reaproveitamento em outro local e deste modo está preparada para as gerações vindouras ou para voltar à terra. Em sintese, é livre na sua essência, móvel mesmo sendo antiga, enfim uma matéria sem tempo.
RG - No seu profundo sentido artístico, seguramente que sente cada vez mais restrições na criação arquitectónica. Desde a primeira construção em taipa até aos nossos dias que obstáculos destaca com as mudanças de legislação e politicas.
AB - Não sinto sabe, sou imune à restrição criativa. O que sinto é uma caterva de legislação inútil e disparatada que é entediante para quem projecta, o que é grave é a circunstância do tempo, um tempo limite a partir do qual eu-mesmo me sinto ultrapassado, esperar pela aprovação, esperar pelo parecer das entidades, esperar pelas especialidades, esperar pelos orçamentos, esperar pelo cliente, esperar sem desesperar é o mais difícil. Julgo que foi em 1994, escrevi um artigo onde abordava e também aconselhava, a fazer uma síntese da legislação, mas ninguém ligou nenhuma. Estava-se mesmo a ver o que iria acontecer; um labirinto para todos. Senão veja, chegou agora (desde há alguns anos) mas no momento complica-se ( não tenho paciência para explicar porquê) um dec-lei sobre a defesa nacional da floresta que restringe as construções e (ai) das Câmaras que não tenham o plano. Mas diga-me s.f.f., existe alguma Lei, aconselhamento, seja o que fôr, sobre o modo como a floresta deve ser implementada? Que espécies prioritárias? Que rejuvenescimento se implementa? Sei perfeitamente o que esta atitude significa: 'Sacudir a água do capote' para desresponsabilizar os políticos! Esqueceram Orlando Ribeiro, Caldeira Cabral, Ribeiro Teles, etc.
A estrutura fundiária mudou, a sociedade também, a migração foi e é complexa, a economia e finanças das famílias agudizam-se e tentam encontrar a todo o custo o caminho eficaz do labirinto - a saída. Na verdade os políticos estão a preparar um barril de pólvora, o momento em que a frágil dinâmica rural desiste e começa a preparar a sua fuga para os limítrofes da cidade, abandonando o campo de vez. Todas as coisas na vida devem ser simples, é através dessa simplicidade que num ápice resolvemos a tormenta.
Entretanto aguardo serenamente pelo momento em que um legislador-brilhante me proíba fazer chi-chi no campo.
O Alexandre vive em São Luís, no Concelho de Odemira, muito provavelmente a aldeia com mais arquitectos a exercerem arquitectura em taipa. É indiscutivelmente um pioneiro e motivo de inspiração para novos arquitectos. Como alentejanos acho que devemos estar gratos pelo Alexandre ter escolhido a nossa arquitectura tradicional como suporte para a sua arte...'
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