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25 fevereiro 2022

'Sudoeste Alentejano - Materiais de construção tradicionais'_António Martins Quaresma

Excerto do texto 'Sudoeste Alentejano - Materiais de construção tradicionais' de António Martins Quaresma
Ficha técnica
Autor: António Martins Quaresma
Título: Sudoeste Alentejano: materiais de construção tradicionais
Data: texto inicial – 2003; texto final – 2014
Local: Vila Nova de Milfontes 
'Este texto faz uma breve incursão histórica na arquitectura vernácula regional, embora apenas no estrito plano dos materiais utilizados na construção. Ele parte de uma comunicação apresentada, em 2003, em Sines, num seminário sobre “arquitectura em terra”1, agora refeita e acrescentada com novas fotografias. Para o efeito, utilizaram-se algumas fontes históricas escritas e observação decampo de velhas casas, a maioria em ruína. Terra, pedra, madeira, cortiça, junco, cana aparecem-nos como materiais utilizados na construção de habitações, celeiros, currais, fornos, moinhos, etc., confeccionadas decerto através das competências genéricas da própria população utente, ou por especialistas, como pedreiros/alvanéus e carpinteiros.
Da terra e da pedra
Em 1758, o pároco de Vila Nova de Milfontes escrevia sobre as consequências do terramoto de 1755: “foi Deus servido ficassem ilesas as casas desta vila, sem que alguma delas padecesse ruína considerável, sendo, como são, quase todas fabricadas de terra a que chamam taipa”.2
Quase todas as casas da vila eram, portanto, de taipa; tratava-se, naturalmente, de pequenos edifícios, em que os movimentos da terra não tiveram repercussão de grande amplitude. Os estragos mais severos verificaram-se nos edifícios maiores, construídos em alvenaria de pedra e cal. Curioso, mas natural, o efeito do maremoto nas casas junto ao rio: de taipa, decerto, delas “apenas ficou sinal onde tinham sido edificadas”.3
Vale da Casca, São Luís, Odemira (no original, “Carrego da Casca, Odemira”, Casa de taipa, com curiosos efeitos decorativos, e seu forno. Foto in Arquitectura Popular em Portugal, vol. 2, Lisboa, Ordem dos Arquitectos, 2004, p. 296 (1.ª ed. 1961).

O uso da cal era escasso. Perto, em Aljezur, no princípio do século XIX, um viajante estranhava a cor escura das casas, muitas delas de pedra (decerto xisto), sem argamassa, visto que a cal era ali um artigo raro. A impressão tornava-se mais forte porque o viajante estava a sair do Algarve, onde as casas eram, normalmente, caiadas.4
Um último exemplo da dificuldade em obter esse produto. Em 1687, uma carreta foi de Alvalade buscar uma carrada de cal a Milfontes: a cal custou cinco tostões, quantia que naturalmente incluía o frete marítimo; o transporte até Alvalade ficou em 12 tostões. Total: 17 tostões (1.700 réis). Mais caro o transporte que o produto!5
Em meados do século XIX, as casas de Sines, cujo número de térreas orçava o de altas, eram todas caiadas e quase todas de pedra e cal.No entanto, um dos arrabaldes, do lado leste, a Aldeia dos Cucos, de feição mais popular, era composto quase todo de “casinholas de taipa”.7
Forninhos, Vila Nova de Milfontes, Odemira. Restos de moinho de vento, de grossas
paredes de taipa. Foto AMQ (2014).

No território do actual concelho de Odemira, a taipa era largamente dominante em muitas áreas, não só nas pequenas moradias, mas até em edifícios de maior importância. É interessante a menção à taipa em igrejas como a de Colos, vila que viu a sua matriz reedificada em tempo de D. Manuel. Conforme visitação da Ordem de Santiago, datada de 1554, a capela-mor era de alvenaria, coberta de abóbada, de lavor manuelino (hoje inexistente). A nave possuía paredes de alvenaria até metade da sua altura (portanto, não apenas nos caboucos) e, do meio para cima, “de taipa, com seu formigão de fora”.Três arcos de tijolo, intercalados, reforçavam-na.9
A utilização simultânea de alvenaria de pedra e de taipa na mesma parede é uma técnica que permaneceu até hoje, sendo que a alvenaria era utilizada na parte inferior, com maior desempenho estrutural, decerto por ser considerada mais resistente a cargas e menos susceptível de ser afectada pela erosão da água da chuva que corria no exterior e pela humidade ascendente. O “seu formigão de fora” parece significar que a taipa era revestida exteriormente com formigão. Parece clara a consciência das limitações da taipa quando se tratava de pedir às paredes maior resistência, como no caso das coberturas em abóbada. Cedo também se verifica a utilização de “taipas”, cercando adros e protegendo as paredes das igrejas da invasão das águas das chuvas, como na igreja do Cercal, em 1565.10 
E, nos arredores das povoações e em zonas onde surgia a repartição da propriedade, caracterizada pela policultura e tratamento intensivo da terra, a prática de cercar essas pequenas parcelas divulgou-se sobremaneira. Tratava-se de proteger, da acção de animais e de pessoas, as valiosas culturas (vinhas, hortícolas, olivais) existentes nessas parcelas, para o efeito “vedadas e coimeiras”. Em Colos, por exemplo, as próprias posturas municipais contemplavam a questão do “tapejo” de vinhas, hortas e, até, ferragiais.11 
Relíquias, Odemira. Casa de alvenaria de pedra e de taipa. Foto: Ordem dos Arquitectos, PT￾OA-IARP-BJA-ODM02-003, (1955).

Estas taipas, de que ainda existem vestígios, marcavam a paisagem. Sobre cabouco de pedra, erguiam-se a cerca de um metro de altura. Muitas vezes, eram “bardadas”, isto é, encimadas por uma camada de mato, coberto de terra batida em ângulo; pranchas de cortiça substituíam por vezes o mato. Mato ou cortiça sobressaíam alguns centímetros para cada lado do muro, melhorando a protecção e dificultando a transposição por pessoas ou animais.12 Os viajantes estrangeiros reparavam nesses muros cobertos de cortiça e faziam-lhes menção nos seus livros de viagens.13
Parecem ter dado origem a certos topónimos com o elemento “taipa” (Vale das Taipas, por exemplo). Naturalmente, a construção de casas e, onde os havia, de muros para cercas exigia extracção de terra. Quando esta se fazia em grande quantidade, os homens do governo municipal eram obrigados a regulamentar: em Colos, em 1709, uma postura proibia a extracção indiscriminada de terra em volta da vila e reservava um local para o efeito; a respectiva coima era a dobrar quando o infractor fosse pedreiro ou servente.14 
A terra aplicou-se igualmente noutros tipos de construções, como os moinhos de vento, de que é exemplo o moinho dos Forninhos, em Milfontes (séc. XX), embora a utilização da alvenaria de pedra fosse nestes edifícios mais empregada. A grande resistência exigida à estrutura tornava preferencial a construções em pedra, mas a opção também dependia da zona, uma vez que os moinhos de taipa parecem ser mais frequentes naquelas em que a taipa era mais usual na construção.
Monte da Comuna, Fornalhas, Vale de Santiago, Odemira. Restos de parede de taipa de um
edifício “histórico”. Foto AMQ (2014)

Já no século XX, verificamos que, em vários lugares do concelho de Odemira, por exemplo, a taipa foi sobretudo utilizada em construções térreas, mas o seu uso também em edifícios de dois pisos não deixou de se verificar, como podemos ver em Relíquias e São Teotónio, por exemplo.15
É preciso realçar que o uso da pedra, associada ou não à taipa, é também muito comum. Em algumas áreas deste concelho, era frequente a construção rural em alvenaria de pedra, sem reboco. Na zona serrana do concelho de Odemira, como na freguesia de São Martinho, a construção em pedra sobrelevava, mesmo, a taipa. Recintos para guarda de animais, em pedra, também eram correntes. Era utilizado sobretudo o xisto (de vários tipos e durezas), mas também o quartzo, o quartzito, o grauvaque e o arenito, conforme as áreas de distribuição destas rochas.(...)'
Monte em Luzianes, Odemira. Pedra e terra. Foto AMQ (2010).

1. Organizado pela Ordem dos Arquitectos, Secção Regional do Sul, Núcleo do Litoral Alentejano.
2. António Martins QUARESMA, Odemira Histórica. Estudos e Documentos. Odemira, Câmara Municipal, 2006, p. 302. Grafia actualizada, como nas transcrições seguintes.
3. Ibidem.
4. George LANDMANN, Historical, military and Picturesque Observations on Portugal, II volume (Military and Picturesque Observations on Portugal), London, T. Cadell and W. Davies, Strand, 1818, p. 141.
5. Quinzenário Nossa Terra (editado em Santiago do Cacém), n.º 26, 3 de Julho de 1932 (agradeço a referência a João Madeira).
6. Na altura, segundo a mesma fonte, havia nesta vila três fornos de cal.
7. Francisco Luiz LOPES, Breve Noticia de Sines, Patria de Vasco da Gama, Lisboa, Na Typographia Panorama, 1850 (ed. fac-similada da Câmara Municipal de Sines, 1985), pp. 34, 35, 38 e 51.
8. No formigão juntavam-se cal, em alta proporção, e terra (ou areia), eventualmente gravilha, sendo o composto utilizado de forma semelhante à taipa, em cofragem de madeira (taipais). Obtinha-se assim um cimento de grande resistência e durabilidade.
9. ANTT, Mesa da Consciência e Ordens, Ordem de Santiago, Visitações, n.º 197, fls. 16 e 16v.
10. ANTT, Mesa da Consciência e Ordens, Ordem de Santiago, Visitações, n.º 212, fl. 15.
11. AHMO, Colos, Posturas, 1691-1732, GB 2/1, passim.
12. António Machado GUERREIRO, Colos – Alentejo – Elementos Monográficos, Odemira, Câmara Municipal de Odemira, 1987, pp. 67 e 94.
13. Lívio Costa GUEDES, A Viagem de Christian, Príncipe de Waldeck, ao Alentejo e ao Algarve descrita pelo Barão von Wiederhold 1798, Lisboa, 1992 (separata do 60.º vol. do Arquivo Histórico Militar), p. 171.
14. AHMO, Posturas, 1691-1732, GB 2/ 1, fs 29 e 30.
15. Cfr. fotos existentes no arquivo fotográfico da Ordem dos Arquitectos. Em linha: http://www.oapix.org.pt/400000/1/index.htm.

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